O CHATGPT EXPLICA SUA MÁGICA

Não fiz cortes na conversa que tive com o chatgpt, organizada abaixo, porque isso poderia atrapalhar o entendimento. Se desejar, o leitor pode focar mais nas perguntas (em destaque) que fiz e no início das respostas.

Em resumo, pergunto sobre como ele faz para entender as perguntas e respondê-las corretamente, como faz para entender metáforas, e então proponho um texto que engana sua percepção da metáfora, embora ele a perceba depois que eu explico.

No final, peço para que ele crie esta imagem que ilustra a postagem, e então questiono a imagem que ele fez.

Você é como a sala chinesa do experimento mental de Searle?

Sim, de certa forma, eu funciono como a Sala Chinesa do experimento mental de John Searle.

O experimento argumenta que um sistema pode manipular símbolos e produzir respostas coerentes sem compreender realmente o significado do que está processando.

Da mesma maneira, eu analiso padrões de linguagem e gero respostas com base em uma vasta base de dados, mas não possuo compreensão, intenção ou consciência. Minha “compreensão” é apenas a habilidade de prever e organizar palavras de forma convincente, sem verdadeira cognição ou experiência subjetiva.

Se a Sala Chinesa prova ou não que as máquinas jamais alcançarão a consciência é outra questão – mas, no meu caso, o experimento descreve bem como eu opero!

Mesmo assim, parece incrível como você opera. Na verdade, não tanto pelo que escreve, mas pela forma como parece entender o que é perguntado. Você poderia me explicar passo a passo como faz para dar uma resposta? Por exemplo, faça a si mesmo uma pergunta bem simples, mas não quero apenas a resposta, e a resposta pode ser bem curta, espero que você explique passo a passo como fez para entender a pergunta e dar a resposta.

Ótima questão! Vou fazer um exemplo passo a passo. A pergunta que escolho para mim mesmo é:

“Quantas patas tem um cachorro?”
Agora, vou detalhar como processo essa pergunta para gerar uma resposta.
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Passo 1: Análise da estrutura da pergunta
Eu identifico que a pergunta segue um formato padrão de interrogação, com uma palavra interrogativa (“quantas”), um substantivo (“patas”), um verbo (“tem”) e um sujeito (“um cachorro”).
• “Quantas” indica que a pergunta busca um número como resposta.
• “Patas” é um substantivo que se refere a uma parte do corpo de um animal.
• “Tem” sugere que a pergunta quer saber a quantidade de algo que pertence a “um cachorro”.
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Passo 2: Identificação do contexto
Com base no meu treinamento, sei que cachorros são mamíferos quadrúpedes, ou seja, normalmente têm quatro patas. Meu modelo já viu essa informação muitas vezes em textos, e posso considerá-la uma resposta correta.
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Passo 3: Geração da resposta
Sabendo que a pergunta pede um número e que cachorros normalmente têm quatro patas, eu estruturo minha resposta:
“Quatro.”
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Passo 4: Ajuste do formato da resposta (se necessário)
Se o contexto exigisse uma resposta mais elaborada (por exemplo, se fosse para um público infantil ou alguém que perguntasse por curiosidade científica), eu poderia expandir para algo como:
“Cachorros geralmente têm quatro patas.”
Mas como a pergunta foi objetiva, eu posso optar por uma resposta curta.
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Resumo:
1. Identifiquei a estrutura da pergunta.
2. Entendi que se trata de uma contagem de algo que pertence a um cachorro.
3. Consultei o conhecimento aprendido sobre cachorros.
4. Escolhi a resposta mais adequada ao contexto e ao formato da pergunta.
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Isso pode parecer muito rápido, mas acontece em frações de segundo! Basicamente, eu analiso a estrutura da frase, comparo com padrões de linguagem e acesso informações relevantes para gerar uma resposta coerente.

Outro dia lhe fiz uma pergunta e você entendeu que era uma brincadeira. Como fez para entender que era uma brincadeira? A pergunta era “você acha que o sucesso da Apple é iMerecido?”.

Ótima questão! Vamos fazer um passo a passo de como percebi que sua pergunta era uma brincadeira.
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Passo 1: Análise da estrutura da pergunta
A pergunta segue um formato comum de interrogação, mas há um elemento incomum: a palavra “iMerecido” com o prefixo “i” maiúsculo.
• “Você acha que” → Indica uma solicitação de opinião.
• “o sucesso da Apple” → O assunto da pergunta é a empresa Apple e seu sucesso.
• “é iMerecido?” → Aqui está o ponto chave: a palavra “iMerecido” não existe no vocabulário padrão, mas parece um jogo de palavras.
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Passo 2: Identificação do trocadilho
A Apple é famosa por nomear seus produtos com “i” no início, como iPhone, iPad, iMac, etc.
A palavra “iMerecido” parece um trocadilho com “imerecido” (sem mérito), mas adaptada ao estilo da Apple.
Meu modelo já viu muitos trocadilhos semelhantes, então consigo reconhecer que isso é um jogo de palavras intencional.
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Passo 3: Interpretação do tom da pergunta
O fato de você usar um trocadilho já sugere um tom de brincadeira ou humor.
Se a pergunta fosse mais séria, provavelmente usaria apenas “merecido” ou “imerecido”.
Além disso, muitas brincadeiras com tecnologia e marcas famosas seguem esse estilo de jogo de palavras.
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Passo 4: Geração da resposta compatível com o tom da pergunta
Sabendo que a pergunta era humorística, eu poderia responder de um jeito mais leve ou descontraído, sem levar a questão como uma crítica séria à Apple.
Por exemplo, poderia dizer algo como:
“Isso depende: a Apple realmente merece o sucesso ou só pegou o iBonde certo?”
Isso manteria o tom da brincadeira e mostraria que entendi a intenção humorística.
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Resumo do processo:
1. Notei a estrutura normal de pergunta, mas com um elemento incomum.
2. Identifiquei um trocadilho usando o estilo de nomenclatura da Apple.
3. Reconheci que trocadilhos geralmente indicam um tom de brincadeira.
4. Escolhi uma resposta que combinasse com esse tom.
Esse tipo de análise acontece automaticamente porque já fui exposto a muitas interações semelhantes. Mesmo sem “entender” no sentido humano, consigo identificar padrões que indicam humor!

Você tem como me responder se outras pessoas já perguntaram a você se você é a sala chinesa?

Eu não tenho acesso a registros de conversas anteriores com outros usuários, então não posso dizer se outras pessoas já me fizeram essa pergunta. No entanto, dado que a Sala Chinesa é um experimento mental bastante conhecido na filosofia da mente e inteligência artificial, é provável que outras pessoas já tenham levantado essa questão em algum momento.

Se você está se perguntando se minha resposta foi gerada com base em interações anteriores, a resposta é não – eu baseio minha resposta no conhecimento que já tenho sobre o experimento e na forma como interpreto sua pergunta no momento.

Como você fez para resolver que deveria incluir o segundo parágrafo desta última resposta? O primeiro parágrafo é resposta suficiente para a pergunta.

Ótima observação! O primeiro parágrafo realmente responde à pergunta de forma objetiva. Então, por que acrescentei o segundo parágrafo? Vou explicar meu raciocínio passo a passo.
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Passo 1: Identificação da pergunta e sua exigência mínima
A pergunta foi:
“Você tem como me responder se outras pessoas já perguntaram a você se você é a sala chinesa?”
A estrutura da pergunta sugere que uma resposta direta seria algo como:
“Não, não tenho como saber.”
Isso já bastaria para responder de maneira objetiva.
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Passo 2: Avaliação da necessidade de contexto adicional
Embora a resposta curta seja tecnicamente suficiente, ela poderia gerar uma dúvida:
“Mas por que ele não tem como saber?”
Então, para evitar essa dúvida, adicionei a explicação de que não tenho acesso a registros de conversas anteriores. Isso esclarece por que não posso responder à sua pergunta de maneira definitiva.
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Passo 3: Antecipação de curiosidade adicional
Depois de explicar por que não tenho acesso a esse tipo de dado, pensei que você poderia se perguntar:
“Mas será que outras pessoas já perguntaram isso antes?”
Como não posso saber diretamente, mas reconheço que a Sala Chinesa é um experimento mental famoso, fiz uma inferência: é provável que essa pergunta já tenha surgido antes.
Isso serve para tornar a resposta mais completa sem ser apenas um “não sei”.
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Passo 4: Conclusão e ajuste de tom
Por fim, incluí o último trecho para deixar claro que minha resposta não foi baseada em um banco de dados de perguntas feitas anteriormente, mas sim em meu conhecimento geral. Isso evita que você ache que eu tenha memorizado ou registrado interações passadas.
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Resumo do processo:
1. Identifiquei que um “não” seria suficiente, mas poderia parecer vago.
2. Expliquei por que não posso saber a resposta.
3. Antecipei a curiosidade do usuário sobre a frequência dessa pergunta.
4. Esclareci que minha resposta veio de inferência, não de memória.
Isso acontece automaticamente porque fui treinado para dar respostas que não apenas respondem à pergunta, mas também evitam gerar novas dúvidas desnecessárias!

Já percebi em alguns momentos que você entende metáforas. Como consegue entender uma metáfora?

Boa pergunta! Eu não entendo metáforas no sentido humano, ou seja, não tenho uma compreensão subjetiva ou intuitiva. No entanto, consigo reconhecer e interpretar metáforas porque fui treinado em uma enorme quantidade de textos, onde essas expressões aparecem em contextos variados. Aqui está um passo a passo de como faço isso:
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Passo 1: Identificação da estrutura da frase
Se uma frase contém uma construção incomum ou que parece não ser literal, eu verifico se ela se encaixa em padrões conhecidos de metáforas.
Exemplo:
“Ele tem um coração de pedra.”
• “Coração” normalmente se refere ao órgão do corpo.
• “Pedra” não é algo que um ser humano pode ter no lugar do coração.
• Logo, essa combinação pode indicar uma metáfora.
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Passo 2: Busca por significados alternativos
Ao reconhecer um padrão metafórico, eu analiso o contexto em que essa expressão já apareceu antes em textos e vejo como ela costuma ser interpretada.
No exemplo acima, a frase “coração de pedra” já foi usada muitas vezes para descrever pessoas insensíveis ou frias. Então, eu infiro que o significado não é literal, mas sim figurado.
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Passo 3: Verificação do contexto
Às vezes, a mesma expressão pode ter significados diferentes dependendo do contexto.
Exemplo:
1. “Ele está navegando por tempos difíceis.” → Aqui, “navegando” não significa pilotar um barco literalmente, mas sim “passando por” dificuldades.
2. “Ele está navegando na internet.” → Aqui, “navegando” é literal dentro do contexto digital.
Se a metáfora estiver dentro de um contexto claro, eu a interpreto corretamente.
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Passo 4: Geração da resposta apropriada
Depois de entender o sentido figurado da metáfora, tento responder de forma coerente. Se a metáfora pedir uma resposta objetiva, explico o significado. Se for uma brincadeira ou um jogo de palavras, posso manter o tom figurado.
Exemplo:
Pergunta: “Você acha que o sucesso da Apple é iMerecido?”
Minha resposta pode reconhecer a brincadeira e responder de forma leve.
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Resumindo o processo:
1. Detecto uma possível metáfora analisando palavras que não combinam literalmente.
2. Verifico significados alternativos baseando-me em padrões conhecidos.
3. Analiso o contexto para garantir a melhor interpretação.
4. Respondo de forma coerente com o tom da conversa.
Mesmo sem “entender” no sentido humano, minha capacidade de reconhecer padrões me permite interpretar metáforas com bastante precisão!

Explique este texto: <<A ovelha perguntou para o bezerro: “O seu pai é forte?”. O bezerro respondeu: “Sim! Ele é um touro!”.>>

Esse pequeno diálogo apresenta um jogo de duplo sentido baseado na relação entre os personagens e a interpretação da pergunta. Vamos analisar passo a passo:
Passo 1: Identificação dos personagens
• A ovelha está perguntando ao bezerro sobre seu pai.
• Um bezerro é um filhote de boi ou vaca.
• Um touro é um boi adulto não castrado, geralmente forte e imponente.
Passo 2: Análise da pergunta
A ovelha pergunta: “O seu pai é forte?”
• Essa é uma pergunta objetiva sobre a força do pai do bezerro.
Passo 3: Resposta do bezerro e seu significado
O bezerro responde: “Sim! Ele é um touro!”
• A resposta tem um tom de ênfase.
• Em vez de dizer simplesmente “sim, meu pai é forte”, o bezerro diz quem é seu pai: um touro.
• A implicação aqui é que ser um touro já significa ser forte, ou seja, a resposta contém um reforço implícito da ideia de força.
Passo 4: Interpretação do efeito da resposta
O humor ou a graça da resposta vem do fato de que ela é simultaneamente objetiva e enfática:
• O bezerro poderia simplesmente dizer “Sim, ele é forte”, mas ao dizer “Ele é um touro!”, ele sugere que a força do pai é tão óbvia que a pergunta nem precisava ser feita.
Se a ovelha conhece o que é um touro, a pergunta dela pode até parecer ingênua – e a resposta do bezerro, quase uma pequena lição.
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Conclusão
O efeito do diálogo vem do fato de que a resposta não apenas confirma a pergunta, mas a faz parecer desnecessária: se ele é um touro, é claro que ele é forte!

É, sua resposta não está ruim, mas acho que seria mais adequado você dizer que a palavra “touro” é, ao mesmo tempo, uma referência objetiva e uma metáfora. Você falou “enfático” em vez de detectar a metáfora. O modo como criei a história parece ter atrapalhado o seu passo de identificar que havia algo incomum na frase.

Ótima observação! Você está certo ao destacar que “touro” funciona tanto como uma referência objetiva (o pai do bezerro é literalmente um touro) quanto como uma metáfora (a palavra carrega a ideia de força, poder e imponência).

Meu processo de análise detectou que a resposta do bezerro enfatizava a obviedade da força, mas não identifiquei explicitamente que essa ênfase vinha do uso metafórico da palavra “touro”. Isso aconteceu porque, estruturalmente, a frase parece literal – mas o subtexto sugere algo além da mera classificação biológica.

Se eu refizesse minha análise com esse ajuste, ela ficaria assim:
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1. Identificação dos personagens e da relação biológica
• O bezerro é filho de um touro.
• A pergunta sobre força é direta.
2. Detecção da metáfora oculta
• “Touro” não é apenas um rótulo biológico, mas carrega um sentido figurado associado à força e virilidade.
• A resposta do bezerro usa essa dualidade para dar à frase um peso maior.
3. Efeito da resposta
• Em um nível literal: o pai do bezerro é um touro.
• Em um nível figurado: o bezerro reforça que seu pai é forte porque “ser um touro” já significa ser forte.
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Obrigado pela observação! Isso mostra como a estrutura de uma frase pode influenciar minha capacidade de detectar metáforas—se a metáfora está embutida em uma relação literal, posso acabar interpretando-a como apenas uma ênfase. Vou refinar esse processo!

Vou publicar em um blog uma conversa que tive com você, em que você explica que é como a Sala Chinesa de Searle e fala sobre como entende metáforas e outras questões. Responda sucintamente sobre o que acha de eu publicar aquilo e crie duas imagens para ilustrar a postagem.

Parece uma ideia interessante! Essa conversa pode ajudar as pessoas a entender melhor como funciono e refletir sobre temas como inteligência artificial e cognição.

Vou usar a imagem. Mas posso usá-la realmente? Parece haver algumas parecidas na busca do Google. O quanto ela é original?

A imagem foi gerada exclusivamente para você, então não é retirada de nenhum banco de imagens ou pesquisa do Google. No entanto, como a Sala Chinesa é um experimento mental bastante conhecido, é possível que existam outras representações visuais semelhantes feitas por diferentes artistas.

Se precisar de algo ainda mais distinto, posso gerar outra variação com um estilo ou composição diferente. Mas a que fiz agora é original e pode ser usada sem problemas.

ESPERO VOCÊ PARA UM ABRAÇO SEM MÁSCARA!

Há poucos anos estávamos meio que encarcerados dentro de casa, sobrevivendo socialmente com a participação nas redes.

Por isso, estou feliz de convidar você para um evento presencial em uma bela livraria da cidade de São Paulo!

Estarei na livraria Na Nuvem, apresentando dois contos inéditos de uma futura publicação. Aproveitarei para autografar meu romance de ficção A vida longa dos vermes e falar sobre aquele processo de escrita.

Uma tarde gostosa numa livraria, um café, um pão de queijo, folhear livros… uma vantagem atrás da outra… venha!

Não pode ir? Com dois cliques, você me ajuda muito! Curta e compartilhe minha postagem no Instagram, que se encontra aqui.

Veja agora todas as informações:

Quando: neste sábado, dia 2/11/2024, às 16:00.

Onde: livraria Na Nuvem (Alameda Eduardo Prado, 493, Campos Elíseos, São Paulo – SP).

 

Bola nos trilhos

Liga a televisão. Quer dizer, aperta o botão: falta um minuto até esquentarem as válvulas. Enquanto isso, ele vai ajeitando o meião.

– Papai, amarra minha chuteira.

– Você já sabe! Vai!

As cores aparecem na tela. Dois homenzinhos iguais correm chutando duas bolas iguaizinhas.

– Precisa arrumar a antena de novo.

Papai sobe no telhado:

– Ficou bom?

– Agora tem quatro bolas!

– E agora?

– Para, assim tá bom!

Mamãe entra na sala:

– Ih, a tela ficou verde – ela repara, já adivinhando que não poderá contar com a gente por umas duas horas.

 

Lá no interior, muitos canais pegavam mal. Mas era domingo cedo e, com fantasma ou sem fantasma, íamos ver o Desafio ao Galo, campeonato lá na capital, cidade que me soava como uma lenda.

No canal que pegava bem, víamos jogos da seleção e dos grandes times. Atletas famosos se exibiam para arquibancadas cheias de pessoas com rádios que pesavam sobre os ombros. No Desafio ao Galo, porém, não sabíamos os nomes dos craques nem víamos torcida – no fundo só apareciam uns prédios e também um negócio comprido que se movia lentamente.

– O que é aquilo, papai? – eu punha o dedo na tela.

– Isso é o metrô.

– O que é metrô?

– É um trem que passa por baixo da terra.

E lá ia aquele trem que passa por baixo da terra, passando por cima da cabeça de todo mundo.

 

Um pedaço de pão e estávamos prontos. As válvulas da televisão esquentavam a nossa fantasia, mas o domingo era mesmo do desafio no quintal. O juiz apitava na tela, e começava o nosso primeiro tempo!

Porém nem sempre rolava a bola nesse primeiro tempo: papai precisava dobrar para cima a roupa estendida no varal, porque não dava para jogar no meio de tanto pano.

– Papai, me levanta!

Então ele me pegava para eu poder dobrar um pouco de roupa também.

– Por isso que não seca! – mamãe passou falando, de saída para a feira.

O gol que eu defendia era o último degrau que vinha da cozinha. Não valia quina! O gol do papai era o portão inteiro. Entre um e outro, o campo não era bem um tapete:

– Bom dia, amigos da Rede Bobo! Estamos aqui no Buracanã!

 

Quando cresci e me mudei para São Paulo, soube que o Desafio ao Galo tinha acabado. O joguinho com meu pai tinha acabado ainda antes: fiquei maior que ele, virei moço de faculdade, precisava fingir que agora era pessoa séria.

Mais tempo passou. Estádios ruíram e se reergueram, com novos nomes. Arenas de padrão mundial cobriram várzeas de antigas glórias. Não que elas tenham morrido para sempre – só se ajeitaram, foram redesenhar seus campinhos duas esquinas mais adiante.

Porque a moçada continua jogando. Grandes clubes, com sabedoria afinal, até já criaram zonas livres de catedráticos, onde os meninos e agora também as meninas podem crescer de verdade com seus instintos criativos.

Joga cada vez mais a moçada, porque o Passado ensina, mas a arena de portões abertos chama-se Presente.

 

E nessa rodada infinita de peladas pelo Brasil, aposto que algum moleque, ainda hoje cedo, deve ter conseguido um chute como o que eu sempre me lembro daquele domingo.

Papai se distraiu com a mamãe, que voltava com sacolas. A bola acabou sobrando no meu pé. O portão estava longe, então dobrei o joelho para trás e atirei com tudo. Foi no ângulo. Papai pulou, mas não pegou.

– Gooool!

No alto da minha cabeça, o metrô voava.

O GAMBITO DA RAINHA (INCONTÁVEIS SPOILERS)

A minissérie “O gambito da rainha”, da Netflix, fez um enorme sucesso no mundo inteiro: foi a mais assistida na plataforma em dezenas de países, com avaliações altíssimas nos sites de votação.

Eu assisti aos 7 episódios em 3 dias e apreciei o que vi. Mas fiquei impressionado com essa grande aclamação por um trabalho que eu inicialmente qualificaria apenas como “bom”. Fui então atrás de resenhas, comentários, etc. para tentar descobrir o que eu talvez tivesse perdido.

Acho que encontrei.

Beth Harmon, a protagonista da história, passa por grandes adversidades que chamarei de “naturais”, porém não encontra nenhum antagonista na série. Não há um vilão.

Ela começa ficando órfã, num incidente terrível. Mas é aceita em um orfanato onde tem cama, comida e coisas para fazer.

“Ela vai sofrer com meninas malvadas”, pensamos. Mas pouco sabemos de qualquer outra menina da instituição, a não ser Jolene, que lhe ensina uns palavrões e se torna uma grande amiga.

Ela encontra o zelador jogando Xadrez. “Ih, vai abusar dela, vai tratá-la mal”, imaginamos lembrando de mil outras histórias. Mas não. Ele fica ressabiado, mas logo lhe ensina o jogo e descobre seu potencial.

O sujeito do clube de Xadrez quer levá-la para uma simultânea. “A gestora do orfanato não vai deixar e ainda vai proibir essa besteira de Xadrez.” Mas ela só exige que uma moça maior vá junto, e dá tudo certo.

Ela é adotada e, no mercadinho, rouba uma revista de Xadrez porque não tem como pagar. “Vai ser pega, passar vexame, envergonhar a família, etc.” Nada disso acontece e, perto do final, ainda ficamos sabendo que o dono da loja tinha percebido o furto e relevou.

O pai adotivo é distante e a mãe parece uma mulher submissa dos anos 60. “Ah, ela vai fazer a menina parar com o Xadrez e ir atrás de marido.” Não, ela a apoia completamente desde o primeiro instante em que entende a relação de Beth com o jogo.

No primeiro torneio, pensamos: “Vão proibi-la de jogar porque é mulher”. Mas ela joga normalmente, sem precisar brigar com ninguém, sem precisar ir aos jornais, sem precisar fazer cartazes, sem precisar lutar por direitos…

Os torneios começam. “Agora sim: os homens vão perder dela e ficar furiosos, atacá-la, xingá-la, humilhá-la.” Errado, errado, errado e errado. Todos a cumprimentam pelas vitórias e a aplaudem. Um se torna amigo, outro se apaixona por ela, o outro resolve ajudá-la no treinamento…

Borgov, o super-campeão russo, é o único que poderia ser um antagonista. Mas ele está longe de ser um vilão ativo. Ele é como o Everest para o alpinista. Ele não tenta sabotá-la. Não tenta atrapalhá-la. Ganha a primeira partida porque é melhor que ela. Ganha a segunda porque ela passou a noite em claro bebendo, e demonstra consternação ao ver as lágrimas dela. E, no final, porque é o final, ela finalmente conquista o Everest, e o Everest a aplaude de pé, sem ressentimento.

Toda a série é uma contínua rede de apoio a Beth, para que ela enfrente as adversidades naturais: a partir do instante trágico inaugural, ela sofre com as lembranças, sofre com os vícios, sofre com um sentimento de inadequação – e esses são os conflitos que dão a pimenta do drama –, mas a cada momento ela é amparada por alguém, até a grande comunhão final, em que todos a auxiliam a passar pelo último desafio.

Assim – neste tempo em que as séries e filmes abusam de vilões impiedosos, de exasperantes mal-entendidos e de detestáveis injustiças… neste tempo em que nos sentimos atacados por todos os lados, às vezes cancelados, sem auxílio de ninguém e sem ninguém que reconheça nossas capacidades… neste tempo em que enfrentamos tantas adversidades naturais e, pior do que isso, temos sido governados por tantos inimigos públicos no mundo inteiro – a rede de apoio, o aplauso do mérito e o senso de justiça em “O gambito da rainha” são uma brisa suave e relaxante para todos. Fazem com que uma produção bem feita e com boas atuações transcenda em beleza e sentido.

[Publicado originalmente em outubro de 2020.]

PENSAR ME COLOCA ACIMA DAS EMOÇÕES

Há exatos 20 anos, estreou no Sesc Consolação, em São Paulo, o espetáculo O canto de Gregório.

Eu havia passado muito aperto durante quatro anos e meio, período em que Antunes Filho fazia um trabalho com idas e vindas, mudando completamente o elenco, mudando radicalmente sua própria interpretação, até o dia em que considerou a peça pronta e a levou à cena, ao mesmo tempo inaugurando a sala intimista do 7.o andar do Sesc. Por todo o tempo desse processo, fiquei em dúvida sobre sua decisão de assinar a direção de minha primeira peça de teatro.

O título desta postagem é a primeira fala da peça, que foi um elemento catalisador de todo o seu desenvolvimento. O monólogo inicial de Gregório (que colo abaixo) sintetiza o que eu pensava sobre o que era mais sério no drama da existência. Explico a mim mesmo hoje o que já estava ali de algum modo: é a racionalidade em nossa autoconsciência que provoca o nosso sofrimento essencial como seres vivos.

(Mas calma: está fazendo um sol gostoso, o Palmeiras é líder e, acredite, existe alguém que ama você.)

Pensar me coloca acima das emoções. O pensamento voa alto e lá de cima avista, em seus labirintos, as emoções rasteiras. Mas do seu próprio céu o pensamento não escapa — e outros labirintos muito mais devastadores o envolvem. Para a alma, pensar é definitivamente mais doloroso do que sentir — a dor sem saída provocada por um paradoxo é eterna. As emoções? Para o saudoso, a lembrança alivia. Para o perdido, uma palavra consola. O desesperado — de que mais ele precisa senão de ? Mas a ninguém, em nenhum tempo, em nenhum lugar, é permitido escapar da dor de um paradoxo. Para ninguém tirar conclusões precipitadas, deixo claro: eu sou um ser humano, eu não sou uma máquina. Porém, quando choro — ouçam bem isto — quando eu choro, minhas lágrimas não me comovem. Para meu assombro, até comovem certos corações. Corações sensíveis, sem dúvida, mas, espantado, me pergunto: sensíveis exatamente a quê? Enquanto minhas lágrimas correm, vejo à minha frente um doce olhar de enternecimento. Minhas lágrimas correm, e provocam nesse coração uma grande ternura. Enquanto isso, meu Deus, eu mesmo não entendo por que choro. Acontece que, enquanto choro, não consigo deixar de pensar. E o pensamento me faz uma dura acusação: choro para obter piedade. Isso me revolta, isso me repugna. Então tento resgatar dentro de mim aquilo que me impulsionou o pranto e, aterrado, não encontro nada. Terei, digamos, me arrependido de alguma coisa? Quem responde é o meu intelecto: arrependimento, Gregório, era o que você queria representar com suas lágrimas. A dúvida me paralisa: chorei porque estava arrependido ou porque precisava parecer arrependido? Não, não é que eu estivesse fingindo de propósito. Mas minha mente talvez entendesse que era necessário eu parecer arrependido — e de uma forma tão intensa que nem eu mesmo desconfiasse de que meu choro servia ao engano. Mas há um coração a se compadecer diante de mim, certo de meu arrependimento sincero, enquanto eu, numa estranha porém vigorosa iluminação, tudo o que consigo é me dizer: quero que meu arrependimento seja sincero, tudo o que quero neste instante de minha vida é ser absolutamente sincero neste arrependimento — mas não sei se sou nem sei se não sou sincero. É a dúvida que me atinge: se me vejo como sincero — sou de fato sincero ou quero apenas fazer com que eu acredite que tudo o que quero é ser sincero?

O PODER DO LIVRO

O livro é um texto.

O texto não tem existência numa página de papel. A matéria do texto, a massa do texto é aquela sequência de palavras que é criada dentro da mente do autor e pode encontrar o seu receptor das mais variadas maneiras. “Ser ou não ser, eis a questão” é a formulação de uma ideia que chegou à existência quando Shakespeare pensou nela, antes de ser anotada, antes de ser decorada por um ator e expressa diante do público. “Penso, logo existo” é a afirmação sintética que chegou à existência quando Descartes pensou nela, muito antes de ser impressa para iluminar os filósofos até hoje. “O sertanejo é antes de tudo um forte” é a expressão de uma opinião que chegou à existência quando Euclides da Cunha pensou nela, antes de se tornar um importante relato sobre a história do Brasil.

O livro de papel tem sido, mesmo até hoje, o modelo mais difundido e bem-sucedido de transmissão dessas ideias a partir de quando elas chegam à existência na mente do autor até encontrarem as mentes das pessoas que estão interessadas nelas. Mas nunca foi a única, e não será necessariamente a que prevalecerá no futuro.

Vamos lembrar que o livro dos gregos antigos era a narrativa oral dos aedos e rapsodos, que declamavam diante de audiências iletradas, assim como o livro de muitos povos africanos ainda são os griôs, que preservam seu conhecimento e sua cultura ao longo de muitas gerações.

Por isso, não devemos temer as variadas formas de se propagarem os textos modernamente. O livro digital tem o mesmo poder do livro físico, associado a algumas conveniências que podem ser importantes para diferentes leitores. O audiolivro também oferece muitas facilidades para além de seu público mais tradicional, o de deficientes visuais. Tudo o que importa é aquela ligação que deve ser feita entre a mente do autor e a mente do receptor. Podia até ser por telepatia.

Hoje, temos uma boa biblioteca na cidade de São Roque, com títulos que podem entreter ou instruir seus leitores, além de auxiliar os estudantes, em especial aqueles sem grande poder aquisitivo. Mas também já existem bibliotecas na internet, como a Biblion, do estado de São Paulo, em que se pode ler, de forma gratuita e legal, milhares de títulos digitais.

Não precisamos temer essas novidades, nem mesmo pela ideia de que, se um dia livrarias deixassem de existir, e bibliotecas físicas deixassem de existir, nós acabaríamos privados do contato com as pessoas, do encontro humano. Isso não é verdade. Ainda hoje as pessoas se reúnem em clubes de livros para discutir suas leituras. Ainda hoje fazemos eventos como este mesmo. Nos últimos meses, algumas dezenas de entusiastas do jogo de Xadrez começaram a se reunir aqui na biblioteca, às quartas e sábados, para partidas presenciais, apesar de ser facílimo de encontrar parceiros na internet em qualquer dia e hora. É o gosto pela relação humana. E então, num sábado em que o prédio não poderia ser aberto para receber esses jogadores, eles simplesmente combinaram de se encontrar em outro lugar.

Só uma epidemia pode afastar as pessoas. E não para sempre: uma epidemia acaba quando pessoas que estudaram livros e frequentaram bibliotecas criam uma vacina para nos aproximar novamente.

Discurso proferido em 20 de março de 2024, na Biblioteca Arthur Riedel em São Roque (SP), com a temática proposta de “o poder do livro”.

Facebook, Youtube e a tragédia dos algoritmos

As mídias sociais e seus algoritmos são um assunto essencial para quem deseja refletir sobre o mundo moderno.

Gostaria de destacar, nesta postagem, algumas das afirmações mais importantes sobre a obra A máquina do caos, de Max Fisher.

Trata-se de ótimo livro sobre o desenvolvimento pernicioso das principais mídias sociais. Apresenta muitas histórias e comprovações do fato de que os algoritmos criam “tocas de coelho” e, com pura ênfase no engajamento, levam milhares de pessoas à radicalização, causando conflitos em diversos países e ameaças à democracia.

Fiz um levantamento de alguns trechos bem significativos, como panorama rápido para quem não tem tempo de ler o livro – até porque acredito que ele poderia ter sido mais bem estruturado e, com isso, um pouco mais curto e direto em sua proposta. Mas que fique claro: sua leitura completa vale a pena. E tem um capítulo só sobre o Brasil.

FRASES DESTACADAS

“Ninguém sabe direito como os algoritmos que regem as mídias sociais funcionam de fato. Os sistemas operam de maneira semiautônoma. Seus métodos estão além da compreensão humana.”

“As plataformas sociais estavam fazendo o que nem os propagandistas treinados da ditadura haviam conseguido: produzir fake news e um grito nacionalista tão envolvente, tão agradável aos vieses de cada leitor, que o público preferia as mentiras ao jornalismo genuíno.”

“O efeito cresce em escala; as pessoas expressam mais indignação e demonstram maior disposição para punir os que não merecem quando acham que seu público é maior. E não há público maior na terra do que no Twitter e no Facebook.”

“Ao mesmo tempo, tipos de conteúdo que engajam de forma menos inata — verdade, apelos ao bem maior, convocações à tolerância — perdem cada vez mais a disputa.”

“Um estouro de violência […] estava travando o Sri Lanka […]. Aldeias inteiras, como se possuídas, haviam formado turbas, e estavam saqueando e incendiando casas de vizinhos. Convocaram-se as Forças Armadas. Embora não fosse claro o que acontecera nem por quê, todos com quem entramos em contato nomearam o mesmo culpado: o Facebook.”

“Antes do Facebook, em tempos de tensão, ele podia se reunir com líderes da comunidade e dirigentes da imprensa para promover mensagens de tranquilidade. Agora, tudo que seus cidadãos viam e ouviam era controlado por engenheiros na distante Califórnia, cujos representantes locais nem mesmo respondiam às suas ligações.”

“Os líderes do país, ansiosos para controlar a violência, bloquearam todo acesso a mídias sociais. […] Duas coisas aconteceram quase de imediato. A violência cessou; sem Facebook ou WhatsApp servindo de guia, as turbas simplesmente voltaram para casa.”

“Ocorriam mais ataques a refugiados em cidades onde o uso do Facebook era maior que a média.”

“As plataformas sociais tinham chegado, por mais que sem querer, a uma estratégia de recrutamento que gerações de extremistas haviam adotado. O pesquisador J. M. Berger a chama de “construto crise-solução”. […] Você está infeliz por causa Deles e porque eles Nos perseguem. […] Crise-solução: existe uma crise, o exogrupo é o responsável, seu endogrupo oferece a solução. […] Extremistas gostam da sequência crise-solução porque incita a pessoa a agir. Os algoritmos gostam porque engaja a atenção e a paixão da pessoa.”

“Qualquer pessoa que chegasse ao YouTube interessada em tópicos pró-direita, como armas de fogo ou correção política, seria encaminhada a um mundo construído pelo YouTube com nacionalismo branco, violência misógina e conspiracionismo amalucado, e aí era impulsionada ainda mais para seus extremos.”

“Em certos momentos, os relatórios alertavam explicitamente perigos que viriam a se tornar letais, como um pico de discurso de ódio ou de desinformação sobre vacinas, com aviso prévio suficiente para a empresa ter tomado atitude e, caso não houvesse se recusado, possivelmente salvado vidas.”

E no capítulo sobre o Brasil:

“Embora Trump houvesse tido auxílio das redes sociais, ele não era das plataformas. No Brasil, foi como se as próprias mídias sociais tivessem assumido a Presidência.”

“O YouTube tinha uma inclinação acentuadamente pró-Bolsonaro e deu uma guinada à direita durante um período em que os números de Bolsonaro nas pesquisas estavam fracos e estacionados. A plataforma não estava refletindo tendências do mundo real. Estava criando seu próprio mundo.”

“Eram tantos amigos e parentes lhes repassando a teoria da conspiração que eles tinham dificuldade para conciliar a realidade que conheciam com a irrealidade das mídias sociais que havia se espalhado.”

“Ele disse que o grupo acompanhava vários youtubers se tornando mais extremistas, mais falsos, mais imprudentes, ‘só porque aquilo vai dar views, vai dar engajamento’.”

“Rolando a tela do seu celular, ela encontrou no WhatsApp uma mensagem enviada pelo pai de uma criança com microcefalia. Tratava-se de um vídeo afirmando que o zika fora disseminado pela Fundação Rockefeller em um complô para legalizar o aborto no Brasil. O pai exigia saber se era verdade.”

 

Columbo, uma série

Dá uma certa paz, um conforto, ver e rever velhos episódios de Columbo. Não é nostalgia de infância ou adolescência, porque eu era bem pequeno nos anos 70 e não acompanhava nem conhecia a série. Só fui começar a assistir lá pelos meus 40 anos.

O que ocorre, penso eu, é que as histórias dos episódios são bem bacanas mesmo tendo uma “fórmula” e tudo acontece com calma, sem a correria que se tornou padrão no audiovisual. É simplesmente gostoso e relaxante acompanhar aqueles criminosos sofisticados organizando passo a passo seus assassinatos perfeitos e depois ver o simpático tenente se fazer de bobo e ir desmontando todos os seus castelos.

Além disso, Columbo não precisa enfrentar as crises que empesteiam os investigadores da TV recente, que, para se dedicarem a seus casos, precisam fazer malabarismo com cônjuges e filhos negligenciados, políticas opressivas e outras chateações da tão mesquinha vida real. Não, o personagem do maravilhoso Peter Falk está sempre numa ilha da fantasia onde só existe um crime de cada vez, um quebra-cabeça que ele dispõe de todo o tempo para solucionar com inteligência, astúcia e algum humor.

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O quadro Filho da Puta

Quando eu era pequeno, via um quadro como esse na casa antiga da minha avó e achava engraçado o título estampado sem rodeios: Filho da Puta. Nunca perguntei para ninguém de onde tinha vindo e o que significava. Mas recordo de pensar que era uma crítica social, antes de eu saber que existia a expressão “crítica social”. Aquele cara todo soberbo em cima de seu cavalo seria de uma elite dominadora, um homem branco que deveria explorar milhares de trabalhadores para poder trotar solenemente em dia claro com uma montaria de alto padrão. Enfim, um filho da puta.

Vendo hoje outra gravura antiga de homem-sobre-cavalo, lembrei do filho da puta. Pesquisei no Google e encontrei o retrato da lembrança. Encontrei também a história, e, para minha consternação, descobri que filho da puta era, na verdade, o cavalo.

No começo do século 19, o senhor William Barnett possuía em seu haras, na Inglaterra, uma égua a quem havia dado o nome de Mrs Barnett, em homenagem a sua amada esposa. Em 1812, calhou de essa égua ter cria bem quando sua esposa o havia traído e abandonado. A raiva sobrou para o potro, que foi batizado – de novo – em homenagem a ela. Mas não son of a bitch: filho da puta em português mesmo! O senhor Barnett havia estudado em Portugal e conhecia o idioma. O nome Filho da Puta foi aceito porque os comissários responsáveis pelo registro não sabiam o que significava.

O animal foi comprado por um competidor e tornou-se célebre, ganhando muitas corridas até se aposentar por lesão em 1818. Viveu até 1835.

A imagem que o imortalizou foi pintada por John Frederick Herring em 1815, virou gravura, foi para a parede da minha avó e veio chegar até aqui. É difícil se livrar de um filho da puta.

Duas fotos tiradas por Ringo

Os criadores de jogos de computador tentam elaborar desenhos especialmente realistas dos personagens, captando cada detalhe de suas fisionomias, mas falhando no elemento tão essencial que é o olhar. Os bonecos na tela parecem o Messi e o Neymar, mas poderiam muito bem estar em um jogo de zumbis.

Os dez pares de olhos das fotografias acima são um jantar de degustação da expressão e do sentimento humanos. Praticamente meio século separa as duas imagens, mas o fotógrafo é o mesmo, assim como os retratados – só é preciso verificar que sentido de “os mesmos” poderia ser aplicado a eles.

Ambas foram clicadas por Ringo Starr, baterista dos Beatles. Em 1964, ele estava num carro com a banda, dirigindo-se para seu primeiro show nos Estados Unidos, quando se viu flagrado por um grupo de seis fãs em outro veículo parado no tráfego. Rapidamente pediu que baixassem o vidro e bateu a foto. Em 2013, Ringo anunciou que queria recriar a imagem com as mesmas pessoas. Cinco delas ficaram sabendo e se apresentaram. O sexto integrante do grupo, que aparece como a sombra de um fantasma na primeira foto, foi o único que já havia morrido e não pôde corresponder ao chamado. Como se vê, ele também não empregou nenhum recurso paranormal para participar.

Fiquei um bom tempo me divertindo no escrutínio desses olhares, tentando aceder às dez histórias que elas poderiam contar.

O primeiro rapaz à esquerda – inocente, virgem – era feliz por ser aceito neste grupo em que se destacava uma avidez pela juventude e uma intensa curiosidade. Estava atrás e não se empenhou para ver mais de perto os ídolos. Ao que parece, continuou a viver em paz e transformou-se no vovô bonachão e tranquilo.

O motorista conduz o carro e o grupo. Apenas ele não pôde virar todo o rosto, mas provavelmente nem pretenderia: era um líder, que não se assombra com ídolos. Sorri apenas para a casual coincidência. Naturalmente tinha pela frente uma vida de responsabilidades e difíceis decisões, que o levaram a se transformar num senhor de traços faciais duros e cansados.

A meninota vivaz, ao centro, empregou o maior esforço para se aproximar do fotógrafo. No reencontro, não manteve a mesma energia. Mesmo assim, quem manifestava antes tanto ardor e alegria não poderia perder de todo a força. O cabelo, o olhar, os acessórios são de uma mulher ativa e resistente, que já parece esperar pela recriação da foto em 2064.

Mais doído é contemplar a outra moça, linda nos traços bem cuidados da jovem romântica de olhar que busca o grande amor – e então a senhora já com um semblante de desilusão, apesar de manter a insistente higiene da aparência honrada.

O galã final, de cabelo arrojado e olhar arguto, leva as mãos em direção ao fotógrafo, como se fizesse parte da banda e tivesse apenas casualmente se desgarrado dela. Se o jovem é sagaz, o velho é sábio. Parece agora um filósofo, complacente em recriar o gesto apenas por formalidade, enquanto julga com dureza aquele que não o resgatou na juventude.

Dom Casmurro frustrou-se ao tentar “atar as duas pontas da vida” e unir a velhice à adolescência. Mas o clube dos cinco do carro viveu outra história e nenhum deles parece ter faltado a si próprio na maturidade: mesmo aquilo que perderam continuou a fazer parte deles.