O GAMBITO DA RAINHA (INCONTÁVEIS SPOILERS)

A minissérie “O gambito da rainha”, da Netflix, fez um enorme sucesso no mundo inteiro: foi a mais assistida na plataforma em dezenas de países, com avaliações altíssimas nos sites de votação.

Eu assisti aos 7 episódios em 3 dias e apreciei o que vi. Mas fiquei impressionado com essa grande aclamação por um trabalho que eu inicialmente qualificaria apenas como “bom”. Fui então atrás de resenhas, comentários, etc. para tentar descobrir o que eu talvez tivesse perdido.

Acho que encontrei.

Beth Harmon, a protagonista da história, passa por grandes adversidades que chamarei de “naturais”, porém não encontra nenhum antagonista na série. Não há um vilão.

Ela começa ficando órfã, num incidente terrível. Mas é aceita em um orfanato onde tem cama, comida e coisas para fazer.

“Ela vai sofrer com meninas malvadas”, pensamos. Mas pouco sabemos de qualquer outra menina da instituição, a não ser Jolene, que lhe ensina uns palavrões e se torna uma grande amiga.

Ela encontra o zelador jogando Xadrez. “Ih, vai abusar dela, vai tratá-la mal”, imaginamos lembrando de mil outras histórias. Mas não. Ele fica ressabiado, mas logo lhe ensina o jogo e descobre seu potencial.

O sujeito do clube de Xadrez quer levá-la para uma simultânea. “A gestora do orfanato não vai deixar e ainda vai proibir essa besteira de Xadrez.” Mas ela só exige que uma moça maior vá junto, e dá tudo certo.

Ela é adotada e, no mercadinho, rouba uma revista de Xadrez porque não tem como pagar. “Vai ser pega, passar vexame, envergonhar a família, etc.” Nada disso acontece e, perto do final, ainda ficamos sabendo que o dono da loja tinha percebido o furto e relevou.

O pai adotivo é distante e a mãe parece uma mulher submissa dos anos 60. “Ah, ela vai fazer a menina parar com o Xadrez e ir atrás de marido.” Não, ela a apoia completamente desde o primeiro instante em que entende a relação de Beth com o jogo.

No primeiro torneio, pensamos: “Vão proibi-la de jogar porque é mulher”. Mas ela joga normalmente, sem precisar brigar com ninguém, sem precisar ir aos jornais, sem precisar fazer cartazes, sem precisar lutar por direitos…

Os torneios começam. “Agora sim: os homens vão perder dela e ficar furiosos, atacá-la, xingá-la, humilhá-la.” Errado, errado, errado e errado. Todos a cumprimentam pelas vitórias e a aplaudem. Um se torna amigo, outro se apaixona por ela, o outro resolve ajudá-la no treinamento…

Borgov, o super-campeão russo, é o único que poderia ser um antagonista. Mas ele está longe de ser um vilão ativo. Ele é como o Everest para o alpinista. Ele não tenta sabotá-la. Não tenta atrapalhá-la. Ganha a primeira partida porque é melhor que ela. Ganha a segunda porque ela passou a noite em claro bebendo, e demonstra consternação ao ver as lágrimas dela. E, no final, porque é o final, ela finalmente conquista o Everest, e o Everest a aplaude de pé, sem ressentimento.

Toda a série é uma contínua rede de apoio a Beth, para que ela enfrente as adversidades naturais: a partir do instante trágico inaugural, ela sofre com as lembranças, sofre com os vícios, sofre com um sentimento de inadequação – e esses são os conflitos que dão a pimenta do drama –, mas a cada momento ela é amparada por alguém, até a grande comunhão final, em que todos a auxiliam a passar pelo último desafio.

Assim – neste tempo em que as séries e filmes abusam de vilões impiedosos, de exasperantes mal-entendidos e de detestáveis injustiças… neste tempo em que nos sentimos atacados por todos os lados, às vezes cancelados, sem auxílio de ninguém e sem ninguém que reconheça nossas capacidades… neste tempo em que enfrentamos tantas adversidades naturais e, pior do que isso, temos sido governados por tantos inimigos públicos no mundo inteiro – a rede de apoio, o aplauso do mérito e o senso de justiça em “O gambito da rainha” são uma brisa suave e relaxante para todos. Fazem com que uma produção bem feita e com boas atuações transcenda em beleza e sentido.

[Publicado originalmente em outubro de 2020.]

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