
Bola nos trilhos
Liga a televisão. Quer dizer, aperta o botão: falta um minuto até esquentarem as válvulas. Enquanto isso, ele vai ajeitando o meião.
– Papai, amarra minha chuteira.
– Você já sabe! Vai!
As cores aparecem na tela. Dois homenzinhos iguais correm chutando duas bolas iguaizinhas.
– Precisa arrumar a antena de novo.
Papai sobe no telhado:
– Ficou bom?
– Agora tem quatro bolas!
– E agora?
– Para, assim tá bom!
Mamãe entra na sala:
– Ih, a tela ficou verde – ela repara, já adivinhando que não poderá contar com a gente por umas duas horas.
Lá no interior, muitos canais pegavam mal. Mas era domingo cedo e, com fantasma ou sem fantasma, íamos ver o Desafio ao Galo, campeonato lá na capital, cidade que me soava como uma lenda.
No canal que pegava bem, víamos jogos da seleção e dos grandes times. Atletas famosos se exibiam para arquibancadas cheias de pessoas com rádios que pesavam sobre os ombros. No Desafio ao Galo, porém, não sabíamos os nomes dos craques nem víamos torcida – no fundo só apareciam uns prédios e também um negócio comprido que se movia lentamente.
– O que é aquilo, papai? – eu punha o dedo na tela.
– Isso é o metrô.
– O que é metrô?
– É um trem que passa por baixo da terra.
E lá ia aquele trem que passa por baixo da terra, passando por cima da cabeça de todo mundo.
Um pedaço de pão e estávamos prontos. As válvulas da televisão esquentavam a nossa fantasia, mas o domingo era mesmo do desafio no quintal. O juiz apitava na tela, e começava o nosso primeiro tempo!
Porém nem sempre rolava a bola nesse primeiro tempo: papai precisava dobrar para cima a roupa estendida no varal, porque não dava para jogar no meio de tanto pano.
– Papai, me levanta!
Então ele me pegava para eu poder dobrar um pouco de roupa também.
– Por isso que não seca! – mamãe passou falando, de saída para a feira.
O gol que eu defendia era o último degrau que vinha da cozinha. Não valia quina! O gol do papai era o portão inteiro. Entre um e outro, o campo não era bem um tapete:
– Bom dia, amigos da Rede Bobo! Estamos aqui no Buracanã!
Quando cresci e me mudei para São Paulo, soube que o Desafio ao Galo tinha acabado. O joguinho com meu pai tinha acabado ainda antes: fiquei maior que ele, virei moço de faculdade, precisava fingir que agora era pessoa séria.
Mais tempo passou. Estádios ruíram e se reergueram, com novos nomes. Arenas de padrão mundial cobriram várzeas de antigas glórias. Não que elas tenham morrido para sempre – só se ajeitaram, foram redesenhar seus campinhos duas esquinas mais adiante.
Porque a moçada continua jogando. Grandes clubes, com sabedoria afinal, até já criaram zonas livres de catedráticos, onde os meninos e agora também as meninas podem crescer de verdade com seus instintos criativos.
Joga cada vez mais a moçada, porque o Passado ensina, mas a arena de portões abertos chama-se Presente.
E nessa rodada infinita de peladas pelo Brasil, aposto que algum moleque, ainda hoje cedo, deve ter conseguido um chute como o que eu sempre me lembro daquele domingo.
Papai se distraiu com a mamãe, que voltava com sacolas. A bola acabou sobrando no meu pé. O portão estava longe, então dobrei o joelho para trás e atirei com tudo. Foi no ângulo. Papai pulou, mas não pegou.
– Gooool!
No alto da minha cabeça, o metrô voava.
Emocionante! Parabéns!!!
Obrigado, Aldo!