Duas fotos tiradas por Ringo
Os criadores de jogos de computador tentam elaborar desenhos especialmente realistas dos personagens, captando cada detalhe de suas fisionomias, mas falhando no elemento tão essencial que é o olhar. Os bonecos na tela parecem o Messi e o Neymar, mas poderiam muito bem estar em um jogo de zumbis.
Os dez pares de olhos das fotografias acima são um jantar de degustação da expressão e do sentimento humanos. Praticamente meio século separa as duas imagens, mas o fotógrafo é o mesmo, assim como os retratados – só é preciso verificar que sentido de “os mesmos” poderia ser aplicado a eles.
Ambas foram clicadas por Ringo Starr, baterista dos Beatles. Em 1964, ele estava num carro com a banda, dirigindo-se para seu primeiro show nos Estados Unidos, quando se viu flagrado por um grupo de seis fãs em outro veículo parado no tráfego. Rapidamente pediu que baixassem o vidro e bateu a foto. Em 2013, Ringo anunciou que queria recriar a imagem com as mesmas pessoas. Cinco delas ficaram sabendo e se apresentaram. O sexto integrante do grupo, que aparece como a sombra de um fantasma na primeira foto, foi o único que já havia morrido e não pôde corresponder ao chamado. Como se vê, ele também não empregou nenhum recurso paranormal para participar.
Fiquei um bom tempo me divertindo no escrutínio desses olhares, tentando aceder às dez histórias que elas poderiam contar.
O primeiro rapaz à esquerda – inocente, virgem – era feliz por ser aceito neste grupo em que se destacava uma avidez pela juventude e uma intensa curiosidade. Estava atrás e não se empenhou para ver mais de perto os ídolos. Ao que parece, continuou a viver em paz e transformou-se no vovô bonachão e tranquilo.
O motorista conduz o carro e o grupo. Apenas ele não pôde virar todo o rosto, mas provavelmente nem pretenderia: era um líder, que não se assombra com ídolos. Sorri apenas para a casual coincidência. Naturalmente tinha pela frente uma vida de responsabilidades e difíceis decisões, que o levaram a se transformar num senhor de traços faciais duros e cansados.
A meninota vivaz, ao centro, empregou o maior esforço para se aproximar do fotógrafo. No reencontro, não manteve a mesma energia. Mesmo assim, quem manifestava antes tanto ardor e alegria não poderia perder de todo a força. O cabelo, o olhar, os acessórios são de uma mulher ativa e resistente, que já parece esperar pela recriação da foto em 2064.
Mais doído é contemplar a outra moça, linda nos traços bem cuidados da jovem romântica de olhar que busca o grande amor – e então a senhora já com um semblante de desilusão, apesar de manter a insistente higiene da aparência honrada.
O galã final, de cabelo arrojado e olhar arguto, leva as mãos em direção ao fotógrafo, como se fizesse parte da banda e tivesse apenas casualmente se desgarrado dela. Se o jovem é sagaz, o velho é sábio. Parece agora um filósofo, complacente em recriar o gesto apenas por formalidade, enquanto julga com dureza aquele que não o resgatou na juventude.
Dom Casmurro frustrou-se ao tentar “atar as duas pontas da vida” e unir a velhice à adolescência. Mas o clube dos cinco do carro viveu outra história e nenhum deles parece ter faltado a si próprio na maturidade: mesmo aquilo que perderam continuou a fazer parte deles.
Não quero que veja minhas fotos, Paulo.
Mas calma, também não é assim! :-D