RESENHA “A ARMA DA CASA”

Romance mostra o preconceito pós-apartheid

(Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, em 10 de junho de 2000)

Numa decisão em que certamente incorreram motivações políticas, a sul-africana Nadine Gordimer recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, em 1991.
Foi o mesmo ano no qual praticamente chegou ao fim o regime de apartheid, que ela denunciava em seus livros. É difícil avaliar seus méritos políticos, mas os literários podem ser vistos (ou revistos) neste novo romance, A Arma da Casa, lançado pela Companhia das Letras (355 páginas, R$ 32,50).

Publicado originalmente em 1998, retrata a África do Sul pós-apartheid a partir do transtorno vivido por um bem-sucedido casal branco, cujo filho torna-se autor de um impensável assassinato e deve ser defendido em tribunal por um advogado negro.

As forças presentes no romance são sugeridas logo de início pela inspirada epígrafe, atribuída a Amós Oz: “O crime é o castigo.” Na situação concreta do enredo, o crime (cometido por Duncan) é o castigo (dele e principalmente de seus pais, por viverem o inferno que veio conturbar seu sossego de classe média alta). Simbolicamente – mas com referências não menos concretas no contexto da narrativa -, o crime (o sentimento do preconceito, figura psicológica que a extinção política do apartheid não pode controlar) é o castigo (a experiência de uma desumanização).

A Arma da Casa é um romance pós-apartheid – a história está ambientada nos dias atuais -, mas uma virada política não transforma imediatamente sentimentos arraigados. O olhar da autora sobre o preconceito é ao mesmo tempo irônico e melancólico. Não há maniqueísmo. O racista praticante, de ontem ou de hoje, até pode ser considerado um indivíduo mau, mas Gordimer não está preocupada com ele agora. Seus personagens são os racistas pacíficos, que, em situações delicadas, vão tomando consciência de sua própria condição. De certa forma, se humanizam. Os que negam essa condição nem precisam ser punidos: sua estupidez é uma ironia contra si próprios.

Com isso, o racismo não aparece como o motor principal dos choques na narrativa, é habilmente deixado no fundo, quase como um detalhe. Essa estratégia é significativa. A autora já detecta o risco inerente ao preconceito fora da superfície, como fator implícito do comportamento.

Afinal, fica difícil lutar contra o que não é manifesto. É nesse aspecto que a situação retratada assemelha-se à do Brasil, que já teve o seu “apartheid”, cujas vítimas (ou, mais especificamente, seus descendentes) ainda padecem de discriminação e idéias preconcebidas herdadas. Em nossa terra (só aqui?) conhecemos bem as formas pelas quais esse preconceito age implicitamente: “Não tenho preconceito algum contra os negros. Nunca deixo de empregá-los por isso.”

Ponto de vista – Para aprofundar a exposição das relações entre as personagens, Gordimer aplicou uma manobra tática: o ponto de vista usado é o dos pais do assassino. Assim, eles representam diante do leitor o espetáculo do sofrimento como se fossem eles próprios os culpados – enquanto, mantendo a coerência da trama, o assassino real deixa transparecer uma indiferença quase estóica em relação à sua desventura. Com isso, a autora ainda consegue inspirar uma atmosfera de mistério policial, apesar de o criminoso entregar-se logo nas primeiras páginas – afinal, perguntam-se os pais, como é que pôde fazer o que fez esse nosso filho tão bem tratado, tão bem-criado, tão bem ajustado em sua classe e sua cor?

Quando esses pais – semiculpados pela atitude do filho – vêem-se “nas mãos negras de palmas rosadas” de um advogado respeitadíssimo, quando um homem negro é incumbido de livrá-los da dor de ver o filho condenado por um inaceitável assassinato que de fato praticou, ilumina-se uma situação terrível: eles, “que nunca foram racistas”, jamais haviam feito algo para abrandar o sofrimento dos negros numa época em que a cor da pele constituía, por si só, uma espécie de crime.

O crime é o castigo? Mas o mundo ainda não reconhece o tribunal da consciência humana. Legítima, só a toga do magistrado. Gordimer não desdenha a importância investida na convenção dos trâmites e conduz seu leitor por variadas reflexões a respeito das leis e a sua moral.

Não é nem um pouco estranho que um romance “estrelado” por um criminoso tenha uma voz narrativa que zombe das leis, com ou sem algum cinismo e um ar de “é melhor você não ver como a justiça e as salsichas são feitas”.

A perspectiva crítica de Gordimer pode não ser totalmente original, mas é aguda. Os eventos do processo criminal são desenhados como rituais formais, não como confrontos investigativos. São um teatro, não uma ciência. Dali não sai uma verdade absoluta, arrancada, com esforço, do mundo real, mas uma formulação convencional elaborada a partir de uma retórica programática. O próprio jogo – o confronto entre os advogados – não chega a existir: os dois lados têm o mesmo objetivo. Como afirma o advogado de defesa de Duncan, sua incumbência é “fazer com que a sentença seja apenas tão severa quanto o permitem as atenuantes – nem um dia a mais”. Nessa pantomima, o promotor tem precisamente o mesmo objetivo – nem um dia a menos.

Sem inovações estilísticas marcantes, A Arma da Casa consolida-se como boa leitura pela argúcia na criação do enredo e pelas intervenções ilustradas do seu narrador.

A escritora felizmente não permite que toda uma “temática” política e social avulte e transforme a narrativa em uma simples tese. Em primeiro plano estão os elementos mais romanescos – personagens fortes e realistas, situações inusitadas, observações irônicas, profundidade psicológica. Talvez tenha exagerado um pouco em alguns pontos da trama, principalmente no final, em que o suspense com relação ao desfecho chega a ser caricato. Mas isso não compromete o valor e o interesse do romance.