Sobre o livro “Cão”, de Rui Xavier
[Esta resenha não contém spoilers.]
Conheço o autor Rui Xavier somente on-line. Ele me enviou seu romance Cão (nVersos, 2013, 286 páginas) pedindo que, se possível, eu o resenhasse.
Foi possível porque gostei do romance. :-)
Fiquei espantado ao saber, depois da leitura, que se trata da adaptação de um texto que foi levado aos palcos anteriormente. O livro dá a sensação de que a ficção em prosa é local mais adequado do que o Teatro.
O romance é narrado em primeira pessoa, com uma prosa bem elaborada e ritmo muito agradável. O vocabulário é preciso, mesmo sem sofisticação. Não vejo, porém, nenhuma utilidade num recurso de deixar “lacunas” no texto. Eu até havia me esquecido desse fato, até dar uma folheada no livro agora que estou escrevendo sobre ele. Em todos os casos, essas lacunas seriam perfeitamente substituíveis por reticências.
A narradora é uma mulher, publicitária muito bem-sucedida, que demonstra aquelas características tradicionais e marcantes nos executivos de sucesso: é workaholic, proativa, esperta, agressiva. A leitura parece nos contagiar com seu temperamento e suas ações, quase nos transmite uma certa estafa, uma exaustão. A trama em si é relativamente curta, a obra se destaca pelos pensamentos da narradora, que tudo comenta e, principalmente, tudo julga. Em alguns momentos, acerta em cheio, como neste ponto:
A maioria das pessoas inventa problemas, elas precisam de um grande problema, se elas não tiverem, a vida delas vira um vazio.
Essa protagonista desenha para nós uma imagem de dureza, de impiedade, que um psicólogo talvez tentasse derrubar, em busca de suas fraquezas. Mas a própria narradora é autoconsciente e reflete sobre suas contradições, como nesta bonita passagem:
A gente perdeu aquele contrato, e eu culpei o Mário em minha cabeça, mesmo sabendo que isso era injusto. Não interessa, a cabeça da gente é assim, existe o pensamento, o comentário ao pensamento e a areia movediça da emoção.
Preciso dizer que a primeira metade do livro não me empolgou tanto, fiquei com a sensação de que precisaria ser mais rápido, que o romance poderia ser significativamente mais curto. A cachoeira de pensamentos da narradora é uma metralhadora que atira para tantos lados que está frequentemente atingindo alvos desimportantes.
Claro que isso é totalmente pessoal, e outros leitores podem se agradar com essa “hiperatividade elocutiva”. Mas minha sensação se consolida nas últimas 50 a 100 páginas, depois da “grande revelação”, quando a narrativa parece entrar no seu ritmo adequado e se torna uma leitura muito instigante, e tudo parece bem mais pertinente para a história.
É uma obra que recomendo para os leitores que gostam de literatura mais simbólica e introspectiva. O livro tem mais qualidade do que os da maioria dos autores brasileiros que fazem sucesso atualmente (não que isso seja tão difícil).
Erick Pasqua fez as ilustrações e a diagramação com muita ousadia para essa edição. O resultado final é elegante e traz mais envolvimento para o leitor. Só não gostei muito de alguns detalhes, como as fontes usadas na capa e nos cabeços de página.
Rui Xavier demonstra um talento inequívoco para a sua idade (29 anos em 2014). Tem uma preocupação clara com as ideias e também com os meandros da escrita. Tenho confiança de que veremos grandes trabalhos dele no futuro.
Veja também meu canal no YouTube, que inclui algumas resenhas em vídeo:
“Davi e Golias”, ótimo livro de Malcolm Gladwell.
Minha grande emoção no Teatro.
“O nobre deputado”, livro que fala sobre corrupção.